terça-feira, 20 de abril de 2010

Quando tiver que ser

Pedalo com mais força, uma perna, a outra perna, enquanto sinto os musculos a vibrar com a força da subida. Não me custa, os musculos não reclamam e a respiração mal se altera. A pedalar de pé, com um olho nas pedras que indicam o caminho para o refugio dos sobreiros e o outro no verde que se estende até ao mar. Não me lembrava de estar tão alta, no cimo da bicicleta enquanto me equilibro e desacelero para poder desviar-me de um tronco. O Pintas, um cão de raça indefenida, pintalgado de preto e amarelo e com um temperamento brincalhão e dócil alterna entre esquivar-se das rodas à minha frente e correr ao meu lado. Quando finalmente paro e desço da bicicleta sou brindada com um salto na minha direcção. Cambaleio com o peso e tamanho dele. Dá-me pelos ombros e é o tipo de cão que se leva como guarda numa noite escura.
Aproximo-me do refugio entre as arvores, olho de esguelha para o local previligiado de contemplação e continuo. Já volto, penso enquanto contorno o banco de pedra e vou até à vedação. Há vacas do outro lado a pastar calmamente. Levantam a cabeça para ver quem lá vem e continuam na sua vida, sem me ligarem. A que estava em trabalho de parto ontem, já não está à vista, enquanto espreito entre os arbustos para a tentar ver. O dono deve te-la levado para o estabulo ou então afastou-se das outras....
Viro costas à vedação e volto a olhar para o banco de pedra entre os sobreiros. Cinco sobreiros o contornam. Dois à frente a enquadrar a vista e os tres restantes a fazer um semi-circulo atrás. Aproximo-me lentamente e sento-me na parte mais alta. Ouço... passaros, os passos e ruminar das vacas, o Pintas a cirandar, o vento, insectos... nada. Vozes, metais, carros... nada. Respiro fundo e sinto a leveza do ar, os cheiros da terra e das plantas. Fresco e limpido. Olho... e vejo verde pintalgado de branco a estender-se pelo vale até ao azul do mar, com a casa branca e terrea no lado esquerdo.
"Parece neve" exclamo noutra altura, "É o que toda a gente diz", foi a resposta. Porque parece mesmo!, penso. Se nunca tivesse visto neve e me a descrevessem, imaginaria assim, os campos verdes pintalgados por milhares de pontos brancos, como os que vejo aqui.
Tenho sede e relembro a aventura da manhã quando me perdi pelos campos à procura de uma fonte para ir buscar água. Não há agua potável na casa branca, debroada a azul. A agua canalizada que existe é do poço e apesar dos filtros, toda a gente prefere a agua da nascente. Perdi-me, acabei por sair do carro e ir encher as botas de lama para poder desfrutar o estar num sitio daqueles. Caminhei alguns minutos pelo meio dos campos e das arvores, pelo meio do silencio enquanto usava a desculpa que tinha visto ali qualquer coisa para poder abandonar o carro. E tinha visto. Vi o chamamento do verde e das arvores, da agua nas folhas e do tapete de plantas que tornava o chão macio e almofadado.
Tive que recorrer a ajuda para encontrar a fonte. E todo o ritual de carregar garrafões de um lado para o outro fez sentido quando a encontrei. A frustração de ter sede e não ter agua para beber porque não tinhamos ido à fonte no dia anterior, fez sentido. Num recanto, rodeada de verde está um lago represado artificialmente. À beira da estrada de terra, salta à vista o contraste do escuro do pequeno lago com o verde luxuriante. Do lado direito há uma pequena construção com uma porta de madeira. Desvio a porta e espreito. Lá dentro a agua brota do chão e enche um reservatório de pedra natural. Ninguém construiu aquela fonte, apenas a taparam para a agua ser protegida de terra e animais. Os animais e a terra têm toda a agua que precisam no lago, mas aquela e diferente. É fresca e transparente, limpida e cristalina. Enchemos os garrafões e pude provar a agua e saciar a sede. Poucos rituais me fizeram tanto sentido como aquele. Apercebi-me da ilusão de ter agua garantida na torneira à distancia de um rodar da mão. Apercebi-me do mau gosto que tem a agua que normalmente bebo e o quão pesada é. Poucas vezes beber agua me soube bem, não pela sede, mas pelo gosto. Pela limpeza e leveza enleadas com o fresco e com o gosto... que deve ser o gosto da água. Aquele gosto que mais nada tem.
Regresso ao presente com a imagem do garrafão de vidro que sobreviveu à viagem, em cima da mesa de madeira, na casa branca. Já lá vou, penso, enquanto volto a olhar em frente e a apreciar a beleza da vista enquandrada pelos sobreiros.
Fecho os olhos para sentir com o quinto sentido... sinto a indecisão e duvidas de quem esteve naquele lugar antes de mim, sinto o chamamento que aquela terra me faz. Cada vez mais forte, cada vez mais alto.
Será quando tiver que ser, penso com um sorriso.

2 comentários:

Inês disse...

Olá Linda: As coisas são quando tiverem de ser, mas por vezes também temos de trabalhar para elas (nem que seja em pensamento). Quando eu vinha passar todos os fins de semana na praia durante o Verão antes de mudar para o campo, sonhava como era bom viver aqui e talvez ir trabalhar em Lisboa... Mas o mais importante era que realmente sonhava e via-me a fazer isso e agora... Agora, aqui estou eu :)

Em relação à água da fonte tenho que dizer que é uma água viva. Vivem lá animais como rãs e salamandras e pequenos outros animais aquáticos que só vivem se a água está realmente boa. O que tu sentiste foi o sabor da água viva que é uma grande diferença.

E as estevas, as plantas que pintam os campos de branco só realmente uma planta muito bonita e símbolo de Melides. A ver mais aqui http://pt.wikipedia.org/wiki/Esteva. Para mim parece mais neve as amendoeiras em flor e até existe uma lenda acerca delas. Aqui está ela:

Há muitos e muitos séculos, antes de Portugal existir e quando o Al-Gharb pertencia aos árabes, reinava em Chelb, a futura Silves, o famoso e jovem rei Ibn-Almundim que nunca tinha conhecido uma derrota. Um dia, entre os prisioneiros de uma batalha, viu a linda Gilda, uma princesa loira de olhos azuis e porte altivo. Impressionado, o rei mouro deu-lhe a liberdade, conquistou-lhe progressivamente a confiança e um dia confessou-lhe o seu amor e pediu-lhe para ser sua mulher. Foram felizes durante algum tempo, mas um dia a bela princesa do Norte caiu doente sem razão aparente. Um velho cativo das terras do Norte pediu para ser recebido pelo desesperado rei e revelou-lhe que a princesa sofria de nostalgia da neve do seu país distante. A solução estava ao alcance do rei mouro, pois bastaria mandar plantar por todo o seu reino muitas amendoeiras que quando florissem as suas brancas flores dariam à princesa a ilusão da neve e ela ficaria curada da sua saudade. Na Primavera seguinte, o rei levou Gilda à janela do terraço do castelo e a princesa sentiu que as suas forças regressavam ao ver aquela visão indescritível das flores brancas que se estendiam sob o seu olhar. O rei mouro e a princesa viveram longos anos de um intenso amor esperando ansiosos, ano após ano, a Primavera que trazia o maravilhoso espectáculo das amendoeiras em flor.

Beijos grandes irmã do coração

Inês

Cris disse...

Linda Inês, obrigada pela lenda... É LINDA!!
Acho que ma contaram quando era pequenina e nunca mais a ouvi... conhecia mais ou menos mas essa versão é muito bonita de tão simples. Obrigada por partilhares *

O sabor que a água tem é o sabor da vida, sim :)
...ainda bem que não sabia que havia salamandras a viver ali e ainda bem que não vi LOL Não a teria bebido tão espontaneamente... mas é bom saber que é por conter vida que a água é tão boa.

O chamamento que essa terra me faz, acontece desde a 1ª vez que aí fui... estou fartinha de saber que não posso forçar esse tipo de situações... Será quando tiver que ser *

Muito, muito, muito obrigada por partilhares o "teu" espaço comigo, Inês. Muito, muito obrigada por me teres convidado para aí ir e me permitires ter a oportunidade de respirar esse ar, beber dessa agua, apreciar as estevas e me perder pelos campos.

Obrigada *

Beijo no coração, irmã