terça-feira, 30 de novembro de 2010

A Princesa e a Ervilha

"Reescreva, usando no máximo 400 palavras, um conto de fadas. E se o Capuchinho Vermelho fosse o mau da fita? E se o sapato servisse mesmo a uma das irmãs?"

Era uma vez um príncipe que procurava uma princesa verdadeira. Uma daquelas de verdade, sensível e genuína. Procurou por todo o seu reino e ainda mais além. Foi aos confins da terra e acabou por regressar a casa desanimado e sem esperança, pois todas as princesas que encontrou não pareciam, aos seus olhos, verdadeiras princesas. Todas elas tinham alguma característica que o convenciam que não eram princesas genuínas.

Numa noite de tempestade em que o vento e a chuva reinavam, alguém bateu à porta do castelo. Quando abriram depararam-se com uma donzela ensopada e com ar infeliz que afirmava ser uma verdadeira princesa. A rainha, quando a viu, duvidou imediatamente. Como poderia uma princesa de verdade sujeitar-se a vir a pé até ao castelo e apresentar-se naquele estado a si e ao seu filho? Não lhe parecia possível. Mas o príncipe viu qualquer coisa. Ele não sabia bem o quê. Talvez um brilho diferente, um jeito de entoar as palavras, de andar que o encantou. A rainha, mãe conhecedora do seu filho e mulher experiente notou o estado de encantamento do príncipe e pensou: Princesa ou feiticeira, esta noite se verá quem és! Mandou servir uma refeição quente à suposta princesa e foi ao quarto onde ela iria dormir. Desfez a cama e colocou uma ervilha e de seguida vinte e um colchões empilhados. Fez a cama e esperou pela manhã seguinte para comprovar a sensibilidade da princesa.

De manhã quando acordou esperou todo o pequeno-almoço que a princesa e o príncipe descessem dos quartos para expor a princesa e o seu teste. Esperou e esperou e, já farta de esperar, mandou acordar os dois. Quando os criados regressaram, disseram à rainha que os quartos estavam vazios. A rainha desesperada, lembrou-se que, na noite anterior, enquanto preparava a cama da princesa, havia deixado os dois a sós para comerem. O tempo suficiente para planearem uma fuga. Procurou durante anos, enviou soldados a todos os cantos do reino e ainda mais além mas nunca mais teve notícias deles. Acabou por morrer sozinha e amargurada por ter tentado provar que a suposta donzela não era uma princesa de verdade.

Quanto aos dois apaixonados, nunca mais se soube nada deles. Ainda hoje existe uma lenda na região ao redor do castelo que conta a história e que termina com “E não se sabe se viveram ou não felizes para sempre”.

segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Escrita Criativa

Poderá ter passado despercebido, aos mais desatentos, a minha cada vez maior vontade de explorar e brincar com a escrita. Os incentivos de quem me rodeia acabaram por conseguir que respirasse fundo e me lançasse a escrever disparates ainda mais disparatados do que aqueles que tenho por hábito escrever. Desengane-se quem estiver à espera de relatos lamechas sobre mim mesma, quando virem uma etiqueta a dizer "Escrita Criativa" no fundo do texto. Não serão textos sobre ninguém, serão pura ficção e qualquer semelhança com a realidade, virtual ou não, será, mesmo, pura coincidência... ou não, que há quem diga que essas coisas não existem.
A verdade é que quando puxo por mim e pelo disparate, o que escrevo até tem uma piada relativa, e o discurso verborreico escorre sem filtros e com uma dose estranha de ironia. Enfim, a minha!
Aos mais desatentos e aos outros, aos um pouco mais atentos, aproveito para informar que o senhor Nicolau seria uma simpatia se, este ano, me colocasse na chaminé um curso de escrita criativa. Sem compromisso, claro está. Mas que seria simpático, lá isso seria. Dar sentido e ordem ao discurso verborreico exige uma dose de técnica que não possuo. A coragem, pelos vistos, estou a arranja-la e quanto ao trabalho e persistência, enfim, quem me conhece sabe que passo mais tempo a escrever que a falar e quando falo entra quase sempre mosca, para não sair uma grande asneira.
Os textos que colocar com a dita etiqueta são a resposta a desafios colocados por um site que se publicita muito bem e que costumo acompanhar na rede social da moda. Ou seja são exercícios que serão sempre precedidos do dito desafio.
Mais uma vez não garanto qualquer tipo de assiduidade à escrita, nem às estórias e contos. Dependem de algo que não depende inteiramente de mim, mas sim das ideias e conceitos que as minhas antenas captam via fm embora, por vezes, sejam muito pouco estereofónicas.
A todos um enorme Bem Hajam, sempre com a certeza que será preciso uma dose de paciência nem sempre alcançável e possível, para ler os meus textos e alucinações até ao fim...

Boneca

Caminhava sozinha, descalça por entre a multidão, sem dar atenção onde punha os pés e a desviar-se da multidão sem notar que o fazia. Caminhava sozinha, enquanto olhava o céu e esperava a chuva que disfarçaria as lágrimas que continha. Caminhava sem rumo e sozinha.
As memórias, um vislumbre, alguém que passava e que a fazia olhar em frente para ver quem aí vinha, era o suficiente para um arrepio a percorrer e para se encolher com a náusea que sentia. O aperto no peito havia de passar, isso sabia. Já o tinha sentido antes e sabia que, mais cedo ou mais tarde, havia de se desvanecer até ficar apenas as memórias de algo que tinha passado. Mas o murro no estômago, a náusea, a sensação visceral de medo era uma novidade recém redescoberta.
Quando se tapa e protege uma ferida antiga e profunda com ligaduras, não se repara que a ferida não está sarada, que continua aberta a corromper a carne. O cheiro e a visão são anulados e ganha-se o habito de tratar das ligaduras, de as retirar quando se dá conta que estão sujas e a apodrecer. Tapa-se a ferida e ficamos a pensar que o problema é trocar as ligaduras. A ferida nunca deixa de doer, nunca. Mas ganha-se o habito da dor e toma-se como um dado adquirido que faz parte de nós. O limite de dor é alargado e parece, só parece, que deixou de magoar. Isto pode durar dias, meses, anos. E dura. Vão-se mudando as ligaduras, trocam-se as sujas por limpas e pensamos que está tudo bem. Mas não está. O alivio é apenas temporário.
Os acontecimentos recentes tinham-na feito tomar consciência que era preciso retirar todas as ligaduras, tinham-na feito dizer com coragem, Já chega, vou tratar disto, vou resolver isto! E começou a retirar todas, uma a uma, algumas com mais violência, outras mais suavemente.
Não estava preparada para ver o que escondiam, não estava preparada para o cheiro fétido que emanava, para o sangue e podridão da carne. Lembrava-se como tinha sido feita, lembrava-se de quem lha tinha feito e e a quem já tinha perdoado. Mas anos a fio a esconde-la tinham-na feito aprofundar-se e envenenar o seu corpo.
A náusea voltou a invadi-la enquanto sentia a dor e o jorrar de sangue. Podia caminhar o que quisesse, por onde quisesse, com quem quisesse. A ferida era tão profunda que não iria curar-se sozinha e recusava-se a esconde-la outra vez. Para que servia esconde-la, agora que a tinha visto, tocado e cheirado?
Passaram-se dias e o murro no estômago continuava a acontecer, enquanto dava voltas à cabeça para tentar perceber como limpar e sarar uma ferida tão profunda. Não sabia e continua sem saber. Talvez o tempo, o amor, a atenção, o cuidado e um par extra de mãos o fizesse.
Ia caminhando sozinha, devagar, mexia-se devagar e cuidadosamente para não aprofundar a ferida, para não a abrir demais. E enquanto caminhava trazia a imagem de uma velha boneca de infância. A boneca estava sentada junto às outras bonecas e parecia-se com todas as outras com o seu sorriso pintado e cabelos sempre alinhados. Um olhar mais atento percebia que um dos seus braços estava colocado junto a ela, desencaixado. Uma boneca partida, sem um pedaço de si, com a junção entre o braço e o corpo laxo e solto. Conseguia encaixar o braço mas sempre que queria que ela levantasse os braços como as outras bonecas, o braço soltava-se e a boneca ficava outra vez partida, incompleta.
Era como se sentia... como uma boneca partida. Que por mais que tente colocar o braço no sitio, ela sabe que aquela boneca nunca será como as outras. Terá sempre de existir mais cuidado e atenção quando a faz levantar os braços. Será preciso amor e cuidado, será preciso dispensar-lhe tempo e considerá-la importante e realmente bonita e especial para brincar com ela. Se assim não for, quem vai querer brincar com uma boneca partida?

sexta-feira, 26 de novembro de 2010

Pequena Morte

Peço a paz
A do espírito,
Dos inocentes
A dos ignorantes.
A dos que não sabem
Nem querem saber.

Peço a paz
Dos anestesiados,
Dos que não sentem
Na pele e na carne.
A paz dos que não vêem
Nada mais para além
Do óbvio, do vulgar.

Peço a paz
A paz do silêncio,
A das tréguas,
A do sabor do vinho
E a do vazio
Depois das lágrimas.

Peço a paz
Da pequena morte,
Sem sonhos nem navios,
Sem perturbações
Nem intempéries.

Peço a paz
E o acordar indefinido,
O suave espreguiçar
E alongar da alma,
Lânguido e tranquilo.
O que só depois da paz
Pode surgir e ser vivido.

terça-feira, 23 de novembro de 2010

Acreditar

Como é que ainda duvidas?
E duvido e vacilo e volto a vacilar.
Estas incertezas são minhas,
Na certeza que passam quando
Deito a mão ao chão para me levantar.

Pois que no fim é a única que tenho,
A certeza que, passado o tempo
Que tiver que passar, as voltas
Que tiver que dar, as pessoas
Que tiver que encontrar e deixar,
Quando baixo a cabeça em resignação
E deito a mão ao chão para me apoiar
É ao melhor de mim que confio e dou a mão.

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Drowning Dreams

Pus o meu sonho num navio
e o navio em cima do mar;
— depois, abri o mar com as mãos,
para o meu sonho naufragar.

Minhas mãos ainda estão molhadas
do azul das ondas entreabertas,
e a cor que escorre dos meus dedos
colore as areias desertas.

O vento vem vindo de longe,
a noite se curva de frio;
debaixo da água vai morrendo
meu sonho, dentro de um navio...

Cecília Meireles, in 'Viagem'

domingo, 14 de novembro de 2010

Amor, Pois que É Palavra Essencial

Amor — pois que é palavra essencial
comece esta canção e toda a envolva.
Amor guie o meu verso, e enquanto o guia,
reúna alma e desejo, membro de vulva.

Quem ousará dizer que ele é só alma?
Quem não sente no corpo a alma expandir-se
até desabrochar em puro grito
de orgasmo, num instante de infinito?

O corpo noutro corpo entrelaçado,
fundido, dissolvido, volta à origem
dos seres, que Platão viu completados:
é um, perfeito em dois; são dois em um.

Integração na cama ou já no cosmo?
Onde termina o quarto e chega aos astros?
Que força em nossos flancos nos transporta
a essa extrema região, etérea, eterna?

Ao delicioso toque do clitóris,
já tudo se transforma, num relâmpago.
Em pequenino ponto desse corpo,
a fonte, o fogo, o mel se concentraram.

Vai a penetração rompendo nuvens
e devassando sóis tão fulgurantes
que nunca a vista humana os suportara,
mas, varado de luz, o coito segue.

E prossegue e se espraia de tal sorte
que, além de nós, além da própria vida,
como activa abstracção que se faz carne,
a ideia de gozar está gozando.

E num sofrer de gozo entre palavras,
menos que isto, sons, arquejos, ais,
um só espasmo em nós atinge o clímax:
é quando o amor morre de amor, divino.

Quantas vezes morremos um no outro,
no húmido subterrâneo da vagina,
nessa morte mais suave do que o sono:
a pausa dos sentidos, satisfeita.

Então a paz se instaura. A paz dos deuses,
estendidos na cama, quais estátuas
vestidas de suor, agradecendo
o que a um deus acrescenta o amor terrestre.

Carlos Drummond de Andrade, in 'O Amor Natural'

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Amar e Ser Amada

Quando as palavras
Se transformam num nada,
Escrevo violentamente
Para esquecer a dor,
Para recordar a saudade,
Para me centrar.
E se também isto te faz recuar,
Pois fica sabendo que também o sou.
Violentamente escrevo, purgo
E exponho de mim a vertigem,
O suspiro, o grito e a vontade
De amar e ser amada.

Vertigem

O vento entra pelos poros da pele, escapa-se por entre a roupa e toca a pele, entranha-se e penetra a alma, lembra-me que estou viva.
Ao longe, lá longe o mar canta entre murmúrios e rugidos. Fala de si, de acalmias e tempestades, de ondas gigantes e dos peixes no mar. Fala das brincadeiras com os navios e das escondidas com os faróis.
Debaixo dos meus pés adivinha-se uma falésia, banhada pelo mar e segura pelo vento.
Abro os braços e deixo-me ir na brisa. Inspiro profundamente, de coração apertado.
Há alguém atrás de mim? Alguém à minha espera? Tenho que esperar por alguém?
Não me lembro exactamente como fui ali ter, entre o torpor de sentires e pensares. O carro guiou-me e depois os pés. Deixei-me guiar até ali sem consciencializar onde estava. Quando finalmente desperto sinto um quase vazio debaixo dos pés, a sensação urgente da recordação de voar. Lembras-te? Abrias os braços, davas um passo e deixavas que o vento te sustivesse o tempo suficiente para voares. E passavas noites nesse embalo, enquanto o frio se entranhava entre a roupa, a chuva te banhava e a lua e as estrelas te iluminavam. Lembras-te?
Com a recordação vem a vertigem, brusca, intensa. Lembro-me. Só não me lembro como se faz. Os passos cambaleiam e relembro que estou viva, enquanto o corpo oscila no quase vazio. As memórias vão ficando mais intensas, mais vividas. Cambaleio e recuo. Ainda não, penso. Não quero dar este salto sem ter a certeza que ninguém me espera.

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Loucos e Sérios

Aos mais presentes e aos mais ausentes, aos que ficaram e aos que partiram, aos de agora, aos de antes e aos que hão-de surgir, aos que só partilham um sorriso, um gesto ou uma dança e aos que partilham a vida inteira... Existe um lugar de honra para cada um de vós no meu coração.

Grata por se terem cruzado comigo, por serem espelhos tão diferentes, por questionarem e me mostrarem tantas formas diferentes de estar no mundo. Grata por aprender convosco. Grata por sentir o coração aquecer quando vos penso.

Grata por vós *


"Escolho meus amigos não pela pele ou outro arquétipo qualquer, mas pela pupila. Tem que ter brilho questionador e tonalidade inquietante.

A mim não interessam os bons de espírito nem os maus de hábitos. Fico com aqueles que fazem de mim louco e santo.

Deles não quero resposta, quero meu avesso. Que me tragam dúvidas e angústias e aguentem o que há de pior em mim.

Para isso, só sendo louco.

Quero os santos, para que não duvidem das diferenças e peçam perdão pelas injustiças.

Escolho meus amigos pela alma lavada e pela cara exposta. Não quero só o ombro e o colo, quero também sua maior alegria.

Amigo que não ri junto, não sabe sofrer junto.

Meus amigos são todos assim: metade brincadeira, metade seriedade.

Não quero risos previsíveis, nem choros piedosos.

Quero amigos sérios, daqueles que fazem da realidade sua fonte de aprendizagem, mas lutam para que o sonho não desapareça.

Não quero amigos adultos nem chatos. Quero-os metade infância e outra metade velhice!

Crianças, para que não esqueçam o valor do vento no rosto; e velhos, para que nunca tenham pressa.

Tenho amigos para saber quem eu sou. Pois os vendo loucos e santos, tontos e sérios, crianças e velhos, nunca me esquecerei de que "normalidade" é uma ilusão estéril."


Oscar Wilde

terça-feira, 2 de novembro de 2010

Para além

Para além de uma palavra, de um sentido, de uma mensagem
Para além de uma imagem, fotografia ou aguarela
Muito para além, existe.
O que existe para além,
Não se escreve nem desenha,
Não se mostra, só por mostrar,
Muito para além do que se vê, ouve ou cheira.
Muito mais além está um sentido,
Um sentido, um conceito
Que, se o descrever, se perde o meu
E ganha o teu, assim como estas palavras
Ganham um sentido muito para além
Do meu, quando lidas ou entoadas.
E mesmo estas verdades não alcançam,
O que está além, não desenham
Nem descrevem todo um mundo que se adivinha.