Sigo viagem e lembro-me que existem uma bombas antes de chegar ao centro sul e que um café seria mais que em vindo. A viagem até casa ainda leva alguns minutos e o café deixa-me dormir perfeitamente. Só me deixa um pouco mais desperta.
Chego à bomba, paro o carro e, como faço sempre a estas horas da noite, vejo bem quem é que está nas bombas e na fila. Faço isto automaticamente. Já percebi que o faço com a atitude de "tu viste-me, eu vi-te, por isso vamos lá a portarmos-nos bem, porque se acontecer alguma coisa, estou atenta e capaz de te identificar". Desde que me lembro de andar sozinha em Lisboa que o faço e talvez seja um reflexo das artes marciais. Mas a verdade é que já evitei bastantes dissabores à custa desta postura.
Estava um homem fora de um carro branco, ao pé de uma das bombas, outro a subir a rua e o empregado da loja a falar ao telemóvel. Esta é uma daquelas conjunturas que nos fazem hesitar. Reparo que o homem que está fora do carro está a olhar para o fundo da rua, com um ar agressivo e dominante (muito mau sinal!) e que o empregado está a olhar para ele enquanto fala (ainda pior!). Buzino, faço sinal ao empregado para saber se é seguro sair do carro e este responde-me com um ok. Ok é ok, penso... saio do carro, de olho no homenzinho com atitude de rufia e vou a dirigir-me para a janela da loja, quando o homem que está cá fora se dirige a nós. Mau! - penso, o que é que se passa aqui?
- Está a ligar para o 112?, pergunta ele ao empregado ao que este responde que sim enquanto me afasto ligeiramente. Pergunto directamente ao homem o que é que se passava. Nada de especial, foi só um rapaz espancado ali em baixo! - como se fosse a coisa mais natural do mundo - acho que se meteu com a mulher de outro e levou porrada!
Eu devo ser de outro planeta, com certeza. Para além de ter ficado absolutamente chocada com a testosterona inerente ao facto de ser absolutamente natural andar à pancada, ainda fiquei mais com os restantes acontecimentos:
- Mas onde é que ele está?, pergunto. Ali em baixo!, diz ele.
Ali em baixo é, na avenida principal de Almada, ou na estrada (outra vez???) ou em cima dos carris do metro à superfície.
- Mas onde?, pergunto, na estrada?
- Acho que não... deixe ver, acho que não... não, não está na estrada, está na parte do meio.
- Mas ele não se levanta?
- Não, está ali estendido, ao que aponta o dedo e finalmente consigo perceber um vulto deitado no chão, sem se mexer.
Pronto, piloto automático ligado e largo a correr na direcção do rapaz... piloto automático a toda a velocidade. Nem me consigo parar quando estou assim. É preciso, vou... sem pensar se é seguro, se o que é, se o que não é...
Chego ao pé do rapaz, sigo o protocolo, que se me perguntarem a frio nem sei exactamente qual é ou preciso de pensar antes de responder. Sinais vitais, consciente ou não, ferimentos visíveis, desapertar roupa, posição lateral de segurança e depois conversa e mimo. O 112 estaria a chegar. O rapaz estava consciente, confuso, com alterações de visão, com dois edemas enormes na região frontal e parietal, mas ainda consegui saber o nome e se tinha bebido, metido alguma droga, antecedentes, etc, etc, etc
Entretanto reparo que estaciona mais um carro branco virado para nós. E eu ali sozinha com o rapaz! Pronto! É desta que vou mesmo ser assaltada! - ao ver três homens e uma mulher saírem do carro com ar suspeito e agressivo. Vou falando com o rapaz, enquanto tento perceber o que os outros estavam a fazer. É que tinham mesmo mau aspecto!! Quando de repente um deles saca de uma sirene azul e a põe em cima do capot.............
Nem sei que diga, que pense, que sinta. Para mim é assustador perceber que esses quatro e o outro que estava inicialmente na bomba são policias. Policias à paisana, supostamente para nos proteger... ou impor a ordem??? A sério que este é para mim um mistério da natureza humana!
Aproximam-se, olham para nós e começam a conversar entre si, mas em voz alta. A minha resposta a isso foi um boa noite alto e bom som e a passar-me completamente. Ai o meu mau feitio a vir ao de cima e eu a começar a ferver....
A conversa entre eles:
-Então o que é que se passou?
- Então, pá, acho que este gajo estava a meter-se com a mulher doutro e o outro dei-lhe porrada! Ia a passar de carro e vi!
- Quem era o outro? Era um gajo de verde escuro que ia a subir a rua?
Ora, corrijam-me se estiver enganada: eu sou um bocado míope, mas de noite e com luzes amarelas o verde escuro passa por preto!
- Verde?? Como é que se sabe que era verde ou azul? De noite não dá para destingir!! - foi a minha resposta com um tom cada vez mais irritado. Aqueles meninos nem sequer se mexeram para ir atrás do outro, não me perguntaram se precisava de alguma coisa ou como é que estava o rapaz.
- Epa! Já te disse para não dizeres essas coisas, pá! - foi a resposta de um colega ao mesmo tempo que lhe dava um safanão no braço.
Até posso estar a ser facciosa, a contar isto da minha perspectiva irritada, mas ainda sei quando é que ouço vozes ou pessoas a falarem umas com as outras. E aquela conversa estava a enervar-me de uma forma...
Continuaram sem se mexer, apenas se afastaram mais um pouco. A mulher e a sua ainda bendita sensibilidade feminina foi a única que se deu ao trabalho de vir realmente ao pé de mim perguntar como é que ele estava, depois da minha explosão.
A conversa entre os outros continuava e resolvi desligar até me chegar aos ouvidos a seguinte frase:
- Também, estava a meter-se com a mulher do outro!!
Ó minha noissa senhoira!!!! Estes são policias???? Que não dizem boa noite, não se preocupam em saber como é que as pessoas estão, se é preciso ajuda, não fazem o trabalho deles pois ninguém foi procurar o agressor e ainda assumem um "acho que" como um facto!!!!!!! E num tom de: estava mesmo a ver!!!!!
A esta altura já estava a falar com o rapaz e lhe ia tapando os ouvidos quando eu não estava falar. O rapaz era perfeitamente normal, 28 anos, bonito, cabelo comprido e limpo, botas da tropa. Podia ser qualquer pessoa que conheço, podia ser um amigo meu, podia ser meu irmão, podia ser eu, podia ser o meu filho daqui a alguns anos. Podia ser qualquer pessoa. Mesmo que não fosse bonito, que tivesse o cabelo ou a roupa suja, que cheirasse mal, que estivesse bêbado ou pedrado - é uma pessoa!! E ninguém merece ser espancado! Ninguém merece ficar com um traumatismo craniano por causa de nada, muito menos por amor ou paixão ou tesão ou o que quer que seja!!! Ninguém merece! Nem mesmo aqueles mentecaptos que andam a brincar ao serviço à comunidade e segurança publica!
Chega a ambulância e um deles vira-se para mim, mesmo antes dos bombeiros chegarem e diz-me: "Pronto, agora já se pode ir embora e deixa-los fazer o trabalho deles".......................... ignorei e voltei a respirar fundo - ignorantes do raio que o parta! Nunca por nunca se abandona um caso de 1ºs socorros sem informar os bombeiros do que se passou até aí. Chegam finalmente os bombeiro, passo a informação e pergunto ao rapaz se consegue levantar-se. Ele levanta-se com ajuda e segue para a ambulância apoiado.
Nem queria olhar para a cara dos policias, de tão zangada estava. Mas não consegui. Agora imaginem-me a apontar o dedo ao nariz deles: "Deviam ter vergonha!! Tamanha insensibilidade, como é que é possível? Que vergonha!" Viro costas e sigo caminho, completamente passada - foi uma sorte ser bem educada e o meu pai não tolerar palavrões, senão a minha linguagem não teria sido propriamente esta e eu ainda ia parar à esquadra por desrespeito à autoridade...
A única coisa que me deixou a pensar que talvez não tivesse sido em vão, foi um deles vir atrás de mim e perguntar-me: "Mas porque é que diz isso?"
- Se não se apercebe da sua insensibilidade, como é que quer que lhe explique?? - talvez não tenha sido a minha frase mais brilhante, mas foi a única que me saiu da boca. E o resto, tudo o que lhes poderia ter dito, não serviria para nada.
Enfiei-me no carro, tranquei as portas e pensei - Não vou ser capaz de dormir nada...