segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Boneca

Caminhava sozinha, descalça por entre a multidão, sem dar atenção onde punha os pés e a desviar-se da multidão sem notar que o fazia. Caminhava sozinha, enquanto olhava o céu e esperava a chuva que disfarçaria as lágrimas que continha. Caminhava sem rumo e sozinha.
As memórias, um vislumbre, alguém que passava e que a fazia olhar em frente para ver quem aí vinha, era o suficiente para um arrepio a percorrer e para se encolher com a náusea que sentia. O aperto no peito havia de passar, isso sabia. Já o tinha sentido antes e sabia que, mais cedo ou mais tarde, havia de se desvanecer até ficar apenas as memórias de algo que tinha passado. Mas o murro no estômago, a náusea, a sensação visceral de medo era uma novidade recém redescoberta.
Quando se tapa e protege uma ferida antiga e profunda com ligaduras, não se repara que a ferida não está sarada, que continua aberta a corromper a carne. O cheiro e a visão são anulados e ganha-se o habito de tratar das ligaduras, de as retirar quando se dá conta que estão sujas e a apodrecer. Tapa-se a ferida e ficamos a pensar que o problema é trocar as ligaduras. A ferida nunca deixa de doer, nunca. Mas ganha-se o habito da dor e toma-se como um dado adquirido que faz parte de nós. O limite de dor é alargado e parece, só parece, que deixou de magoar. Isto pode durar dias, meses, anos. E dura. Vão-se mudando as ligaduras, trocam-se as sujas por limpas e pensamos que está tudo bem. Mas não está. O alivio é apenas temporário.
Os acontecimentos recentes tinham-na feito tomar consciência que era preciso retirar todas as ligaduras, tinham-na feito dizer com coragem, Já chega, vou tratar disto, vou resolver isto! E começou a retirar todas, uma a uma, algumas com mais violência, outras mais suavemente.
Não estava preparada para ver o que escondiam, não estava preparada para o cheiro fétido que emanava, para o sangue e podridão da carne. Lembrava-se como tinha sido feita, lembrava-se de quem lha tinha feito e e a quem já tinha perdoado. Mas anos a fio a esconde-la tinham-na feito aprofundar-se e envenenar o seu corpo.
A náusea voltou a invadi-la enquanto sentia a dor e o jorrar de sangue. Podia caminhar o que quisesse, por onde quisesse, com quem quisesse. A ferida era tão profunda que não iria curar-se sozinha e recusava-se a esconde-la outra vez. Para que servia esconde-la, agora que a tinha visto, tocado e cheirado?
Passaram-se dias e o murro no estômago continuava a acontecer, enquanto dava voltas à cabeça para tentar perceber como limpar e sarar uma ferida tão profunda. Não sabia e continua sem saber. Talvez o tempo, o amor, a atenção, o cuidado e um par extra de mãos o fizesse.
Ia caminhando sozinha, devagar, mexia-se devagar e cuidadosamente para não aprofundar a ferida, para não a abrir demais. E enquanto caminhava trazia a imagem de uma velha boneca de infância. A boneca estava sentada junto às outras bonecas e parecia-se com todas as outras com o seu sorriso pintado e cabelos sempre alinhados. Um olhar mais atento percebia que um dos seus braços estava colocado junto a ela, desencaixado. Uma boneca partida, sem um pedaço de si, com a junção entre o braço e o corpo laxo e solto. Conseguia encaixar o braço mas sempre que queria que ela levantasse os braços como as outras bonecas, o braço soltava-se e a boneca ficava outra vez partida, incompleta.
Era como se sentia... como uma boneca partida. Que por mais que tente colocar o braço no sitio, ela sabe que aquela boneca nunca será como as outras. Terá sempre de existir mais cuidado e atenção quando a faz levantar os braços. Será preciso amor e cuidado, será preciso dispensar-lhe tempo e considerá-la importante e realmente bonita e especial para brincar com ela. Se assim não for, quem vai querer brincar com uma boneca partida?

Sem comentários: