domingo, 17 de agosto de 2008

Uma Estória para Crianças

Era uma vez uma menina, já não assim tão pequenina que, um dia descobriu que tinha um coração.

Um coração pequenino e empedernido, mas que existia. Devagarinho, um bocadinho de cada vez, essa menina, em quem já se adivinha o cheiro a sol e mar, começou a retirar a casca dura e rígida que cobria o seu coraçãozinho. Doía muito, mas cheia de coragem, foi alimentando-o, enchendo-o de luz, esperança, amigos e Amor.

O coração foi crescendo, crescendo e um dia a menina descobriu que o seu coração já não cabia no peito. Era tão grande e vibrante que se espalhava para lá dos limites do seu corpo. O seu corpo e face foram tomando a forma de coração e até nos seus olhos se consegui a distinguir a sua forma e luz. Brilhavam tanto que, por vezes, os outros se assustavam. Não estavam habituados…, pensava ela.

Descobriu que conseguia tocar os outros com o seu coração, conseguia senti-los e às suas dores, amores e desamores. Isso deixava-a muitas vezes tristes. E às vezes nem conseguia distinguir se essas dores eram dela ou dos outros.

Ao longo do tempo percebeu que o seu coração batia em conjunto com os corações de algumas pessoas, como um único relógio, tic tac tic tac, faziam eles em perfeita sintonia. Isto alegrava-a muito. Ainda mais porque era muito raro acontecer. Às vezes era só por um instante e logo passava, outras vezes só se dessincronizavam de vez em quando.

Todo o Universo batia e pulsava com o seu ritmo. A menina pequenina e grande ficava feliz quando se sentia em sintonia com o coração do mundo, mas entristecia-se de seguida, ao perceber que muito poucas pessoas sentiam ou tentavam acompanhar esse som único e belo.

E a menina sentia, vivia e tentava lembrar-se de quem era no rodopio de tanto sentir.

Num dia feliz, em que se comemorava a sintonia de três corações especiais, a menina encontrou alguém. Alguém diferente. Ela não percebeu logo. Nem nunca percebeu porque, mas esse coração tinha a mesma cor que o dela. Exactamente a mesma cor.

Não sabiam que os corações têm cores diferentes? É verdade! Cada um com a sua mistura de cores. É o que os torna tão especiais e únicos, todos diferentes entre si. Ou assim pensava a menina…

Como é possível, um coração da mesma cor do meu? – pensava ela estarrecida – Nunca tal coisa vi! Observou-o atentamente, tentou senti-lo, sentiu-o e começou a sentir-se cada vez mais encantada. E assustada. É que apesar de terem a mesma cor, os seus corações batiam descompassadamente. E mais assustador ainda: tinham formas diferentes. Como podia isto ser? A menina estava cada vez mais assustada, mas mesmo assim resolveu que tinha de sentir aquele coração. Era tão estranho olhar e sentir aquele coração. Era como olhar para um espelho de feira, em que a imagem regressa aos nossos olhos com a mesma cor, mas distorcida. Diferente. Era ela, mas não era. Era ela, mas não era.

Não sabia porque e ainda hoje não sabe, mas tinha de sentir aquele coração a bater junto ao seu. Tinha de sentir, tocar, enlear devagarinho e com muito carinho, para que a pouco e pouco pudessem bater, pulsar e vibrar como um só. Isso seria extraordinário.

Aproximou-se devagarinho, sem jeito e envergonhada. Cada vez mais encantada porque mesmo de perto não via diferença de cor entre os dois.

Cheia de coragem e de medo, quando já estavam mais perto, abriu o seu peito e ofereceu o seu coração aquela pessoa. Ofereceu-o com o seu melhor e o seu pior. Com as suas confianças e todos os seus medos. A menina nunca tinha feito isso desta forma. Já tinha partilhado o seu coração com algumas pessoas, mas nunca assim.

A pessoa a quem o ofereceu, um homem menino com nome de anjo, aceitou-o a medo. Talvez nunca tivessem feito isso com ele também, pensou a menina.

O coração dele estava pequenino, encolhido e com feridas abertas. Ela conseguia senti-lo demasiado bem. Tanta dor, tanta raiva, tanto medo e tanta vontade. Por uns momentos colocou o coração dela junto ao seu. E como o Amor é inesgotável, a luz do dela começou a tentar sarar o dele. E tudo parecia bem…

Embora o homem menino, com nome de anjo, não conseguisse ver a cor do coração da menina, senti-a. Sentiu essa afinidade extraordinária. Sentiu que aquele era um momento único e magico e por isso o colocou tão perto.

Mas o que nenhum dos dois sabia é que dois corações, quando estão a bater de forma tão diferente, não podem ser colocados demasiado próximos um do outro. A aproximação tem de ser mais lenta. Não existem regras para estas coisas de corações, mas eles precisam de tempo para se ajustarem uns aos outros.

Assim, em vez de irem acertando lentamente o ritmo, os dois corações tentaram mostrar ao outro como batiam e que som faziam. Ora isto acontece muitas vezes. É assim que os corações se acertam, ouvindo-se uns aos outros e acertando o ritmo uns pelos outros.

Nós, pessoas, achamos sempre que somos nós que decidimos essas coisas e que o nosso coração só bate como queremos e nem nos apercebemos que bate pelos outros. E que o bater do coração dos outros é um eco do nosso próprio.

Mas, como foi demasiado rápido, acabaram numa grande confusão de sons e ritmos. Numa barulheira em que cada um fala mais alto para se fazer ouvir.

Nessa altura era quase demasiado tarde. A menina começou a fazer recuar o seu coração dorido de novo para o seu peito, para permitir ao seu coração e ao do homem menino voltarem a bater de forma habitual. E o homem afastou o dela e recolheu o seu. Ufa, pensaram, foi por pouco! E ambos sentiram alivio depois de tanta confusão….

Sabem que os corações dos homens e mulheres deste mundo têm memória? Não é como a nossa memória normal que se lembra de acontecimentos, datas, conhecimento e ressentimentos. Os corações só se lembram do que sentiram de bom. E assim, depois do alívio, os corações lembraram-se um do outro, das suas semelhanças e diferenças. A nossa memória decora melhor as diferenças. Mas os corações choram a lembrança do que é semelhante. E encantam-se com a diferença

E assim homem e menina, mulher e menino continuaram a viver durante algum tempo. O coração lembrava com carinho as cores do outro que eram as suas próprias. E a memoria insistia nas diferenças e na sensação de susto e alívio.

Talvez bastasse o tempo, talvez bastasse mais tempo…

Talvez… ou talvez não…

Continuam sem saber. Continuam a confiar mais nas suas memorias que nos seus corações.

A menina grande e o homem menino.

Sem comentários: