quinta-feira, 18 de junho de 2009

Feridas antigas

Quando se tem uma ferida com o tempo acaba por cicatrizar. Devagarinho, com tempo, atenção e cuidado vão-se formando camadas de tecido que cobrem a ferida até, eventualmente, pele nova surgir à superficie.
Durante algum tempo a pele está tão sensivel que de cada vez que olhamos, tocamos ou nos tocam naquela pele nova, nos encolhemos e relembramos a dor e a ferida aberta.
Os anos passam e a pele nova deixa de ser assim tão nova. Vai ficando mais espessa, a cor rosa vai suavizando até ficar apenas uma marca. Uma simples marca.
A ferida antiga cicatrizou e deixou uma cicatriz que nos relembra, de tempos a tempos, que tivemos ali uma parte do nosso interior exposto. Que sangrámos e doeu, que tivemos medo. Relembramo-nos que já passou.
Se essa ferida antiga tiver sido muito grande, muito extensa ou muito profunda, ou então se nos ferimos muitas vezes, acabamos por evitar, a todo o custo, qualquer situação onde aquela dor ou outra semelhante se possa repetir. Temos medo de nos voltar a magoar, ficamos cautelosos, deixamos de correr riscos, pesamos e analizamos cada impulso com as probabilidades de voltar a acontecer algo de minimamente semelhante. Sobrevivemos uma vez, não queremos arriscar de novo...
E sobrevivemos...
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Esta podia ser uma metáfora para qualquer situação das nossas vidas. E até é! Cada um de nós já passou por isto. A nível fisico ou emocional. São as situações onde as marcas são mais profundas.
Quando finalmente percebemos que quando sobrevivemos não vivemos, passamos todo o tempo disponivel a enfrentar estas cicatrizes antigas. Aprendemos a aceitá-las e a considerá-las belas e cheias de história. São a nossa história. São o que nos levou aqui. Como cada uma das rugas que vão surgindo ou cada um dos belos cabelos brancos.
Quando não voltamos o nosso olhar para esse passado e o aceitamos, lhe sorrimos e perdoamos arriscamos a, quando menos esperamos, ter uma reacção de pânico. De fugir, desaparecer da situação que nos relembra a dor e a ferida antiga.
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Hoje aconteceu-me uma situação curiosa. Lembro-me de ler relatos de pessoas que tinham sido submetidas a tortura, a dor fisica profunda que lhes deixou marcas profundas, não só na pele, mas no mais fundo do seu inconsciente. E que, anos depois, tinham ataques de panico quando colocados em situações que lhes despertassem essa memória. Tinham reacções fisicas tão violentas que chegavam a ter sintomas de enfartes do miocárdio. As descrições na primeira pessoa destes casos são impressionantes.
Com cercade 14 anos fiz uma desvitalização de um dente sem anestesia. Foi, depois do parto, a situação que me recordo de dor fisica mais intensa que não podia controlar. Hoje em dia, se me tentassem fazer o mesmo, a situação correria muito mal para o dentista. Com 14 anos nem questionei se era normal a dor ser tão intensa.
E hoje tive que pedir ao dentista 5 minutos para me acalmar, tive que me levantar da cadeira, agachar-me, controlar a respiração, focar-me para deixar de tremer e limpar as lágrimas sob o ar de espanto do dentista, só porque me disse que ia ter que mexer no mesmo dente...
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As feridas antigas surgem quando menos se esperam. Não estava à espera desta. De cada vez que vou ao dentista conto o episódio e exijo não sentir dor. Dose máxima de anestesia ou levanto-me, vou-me embora e não pago.
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Tal e qual como vou fazendo noutras coisas pela vida... Não tolero que me inflijam dor sem o meu consentimento. Quando a situação se torna dolorosa e não consigo controlar a dor, afasto-me. Afasto-me sem sentir que devo nada.
A velocidade com que me afasto das situações só depende da dor que sinto.
A dor que sinto depende unicamente da minha sensibilidade à mesma.
E a minha sensibilidade depende das lições que aprendo...
Aprendo depressa... mas fiquei com uma pergunta...
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Estou a aprender ou a deixar de arriscar?

2 comentários:

a.mar disse...

É impressionante como nem todas as rochas são eodidas pelo tempo.
Ainda temos menires de há milhares de anos. Rochas/monumentos que se destacam da Terra e que o tempo não dissolveu.

Inês disse...

Sabes linda Às vezes esquecemos que quando vamos tocar aquela ferida pode ser um bálsamo que ajuda a curar melhor a ferida. Às vezes doí quando pomos lá a mão para colocar o bálsamo e depois reparamos nas rápidas melhoras da ferida. E a ferida em si também traz algo de bom. Algo que precisamos de viver e ter a experiência.

É saber que podemos optar podemos sentir um jacuzzi quente e borbulhante quando estamos a ser bombardeados por uma descarga de esgotos (desculpem aos restantes mas esta alusão é privada)